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Continuamos ouvindo o texto do “sermão da montanha”, conforme Mateus. Jesus está no alto da montanha, que recorda o Monte Sinai, local onde Deus fez a aliança com o seu povo através de Moisés (Cf. Ex 19,3-20,21), de onde fala ao povo sofrido. No longo discurso deste domingo, Ele afirma, no início, que não veio abolir a Lei e os Profetas, mas dar-lhes pleno cumprimento (v. 17). Lei e Profetas são a síntese de todo o primeiro testamento. Mateus escreveu o seu texto por volta do ano 80, quando alguns cristãos, provenientes do judaísmo, se perguntavam se deviam continuar observando a Lei de Moisés e qual seria a novidade na mensagem trazida por Jesus. Em resposta, Mateus registra que Jesus não veio abolir a Lei e os Profetas, mas dar-lhes pleno cumprimento (v. 17). Conforme os padres Dehonianos[1], a Lei de Deus permanece válida e é eterna, porém, é preciso encará-la não como um conjunto de prescrições legais e externas, que obrigam o homem a proceder desta ou daquela forma rígida, no contexto desta ou daquela situação particular, mas como a expressão concreta de uma adesão total a Deus. Os fariseus tinham caído na casuística da Lei e acreditavam que a salvação dependia do cumprimento de certas normas concretas. Para Mateus, o projeto de Jesus ultrapassa e envolve o compromisso total com Deus e com a sua proposta. A interpretação da Lei precisa ir além da letra fria, deve considerar a sua verdadeira intenção, que tem como preocupação central a justiça do Reino, a vida em abundância para todos, especialmente os mais fragilizados. Os seguidores de Jesus têm que superar a justiça dos Mestres da Lei e dos fariseus, que ficavam presos à letra, e que se regozijavam por se considerarem seus fiéis cumpridores.
Mateus apresenta seis antíteses a alguns mandamentos da Lei: quatro no texto deste domingo e duas no próximo domingo, que continuará o longo discurso de Jesus. Ele pretende destacar o verdadeiro espírito da Lei que é promover a beleza da vida, com autêntica autoridade, pois vive o que ensina.
A primeira antítese diz respeito às relações entre as pessoas. Jesus lembra o mandamento dado aos antigos: “não matarás”, com a observação da condenação ao que o fizer (v. 21; Cf. também Ex 20,13; Dt 5,17). Ele entende esse mandamento, para além do derramamento do sangue humano, como o dever de não provocar qualquer dano ao irmão. Há inúmeras formas de fazer mal aos outros: as palavras ofensivas, as injúrias e difamações que visam destruir a reputação dos outros, as diversas agressões proferidas com ódio no coração. O discípulo de Jesus deve prezar a vida do outro, deve ser capaz de divergir sem ferir, respeitando a dignidade da vida humana. A essa proibição – não matar, Jesus acrescenta a prescrição da reconciliação com o irmão para poder se relacionar com Deus na liturgia (vv. 23-24), pois quem odeia o irmão não pode ter uma relação verdadeira com Deus. Quem segue Jesus deve depor as armas da violência dissimulada ou explícita, “porque aceitou ser ‘promotor da paz’, e considera insulto ao Deus da vida o culto que deixa de lado a reconciliação” (Bortolini, Roteiros Homiléticos, Anos A, B e C, p. 148).
A segunda antítese diz respeito ao adultério. O mandamento exigia não o cometer (Cf. Ex 20,14; Dt 5,18), sob pena de morte (Cf. Lv 20,10). Recaía um peso maior sobre os ombros da mulher que não era fiel ao seu companheiro, enquanto o homem, ao praticar esse erro, infringia o direito do outro homem sobre a mulher envolvida. Jesus equipara esse dever para homem e mulher e convida a ir além da prescrição legal, atacando o mal pela raiz: o coração humano, de onde brotam os desejos de apropriação indevida da outra pessoa. Ele aconselha a educar o olhar, por onde podem entrar os desejos, e a mão, órgão que realiza as ações e concretiza os desejos. Cada pessoa deve ser vista na beleza da sua dignidade humana, não como um objeto de prazer a ser usado. A mão deve destinar-se sempre à prática do bem, não à realização do mal. Claro que não podemos fazer uma leitura fundamentalista, ao pé da letra, do convite feito por Jesus a arrancar o olho que vê a pessoa com desejo de possuí-la e cortar a mão que realiza coisas erradas (vv. 29-30), mas entendê-lo como proposta a educar o nosso olhar e as nossas atitudes ao bem. Caso fosse interpretado e seguido ao pé da letra, teríamos uma sociedade mutilada, pois todos somos pecadores.
A terceira antítese diz respeito ao divórcio, direito exclusivo do homem, que, ao deixar a sua mulher, deveria dar-lhe uma certidão (v. 31; Cf. Lv 24,1)). Moisés tinha apresentado essa orientação, provavelmente, para evitar que a mulher sofresse a acusação de adultério. Jesus, porém, acha que o divórcio não é a melhor solução; ao contrário, favorece a prática do adultério (vv. 31-32). Na origem do plano divino, Deus criou o homem e a mulher e os chamou a viverem o amor, partilharem a vida e serem felizes até o fim (Cf. Gn 2,24; Mt 19,4-6). Mateus faz uma ressalva nesse ensinamento de Jesus: a união irregular (v. 32), que, segundo alguns autores, refere-se ao casamento entre parentes próximos, o que a legislação do primeiro testamento proibia.
A quarta antítese diz respeito ao juramento, “procedimento legal e prática religiosa admitidos e respeitados” à época (Cf. Bíblia do Peregrino, Novo Testamento, nota à página 56), usado em vista da desconfiança na palavra humana, visando dar-lhe credibilidade com o apelo a uma instância superior. Deus não deve ser metido nisso, nem seus atributos ou símbolos. Para Jesus, a necessidade do juramento é incompatível com os valores do Reino, que prioriza a verdade. Quem segue Jesus deve ser profundamente coerente com a verdade em relação a si mesmo, aos outros e a Deus.
Mateus situa Jesus entre o passado do primeiro testamento, e o futuro trazido por Ele. O passado é assumido por Jesus, mas deixando seus aspectos caducos para trás e reinterpretando-o. O espírito da antiga Lei é importante, e deve ser observado pelos seus discípulos, mas de um modo diferente dos mestres da Lei e dos fariseus. As quatro antíteses hoje apresentadas retratam essas diferenças. Quem segue Jesus não apenas é proibido de matar o seu irmão, mas convidado a respeitá-lo; não somente é proibido de cometer adultério, mas exortado a ter uma relação respeitosa com a outra pessoa, ciente da sua dignidade; não apenas é desestimulado ao divórcio, mas convidado a viver uma relação amorosa no matrimônio, que se estenda por toda vida; não deve jurar em nome de Deus e dos seus símbolos, mas deve ser comprometido profundamente com a verdade.
+Dom Jeová Elias Ferreira
Bispo Diocesano
[1] https://www.dehonianos.org/portal/06o-domingo-do-tempo-comum-ano-a0/ (consultada dia 04/02/2023).
Fonte: Diocese de Goiás